segunda-feira

Aonde Formos e o que Acontece De Fato


“Saudades é sentir falta?
Sentir falta é saudade?
Amar é gostar de verdade?
Gostar é amar de verdade?”

O costumeiro sorriso irônico de criança fazendo travessura se fazia na boca dela, enquanto corria e deixava os cabelos tremularem ao vento. Ele arfava a alguns metros de distância, o ar lhe escapando dos pulmões. Nunca ninguém poderia dizer que eles não seriam felizes. De fato eram. A crise que esmagava o país contra a parede fazia pouco caso dos dois. Ou eles faziam pouco caso dela. O apartamento encardido que cheirava a pizza ainda estava lá. Eles também. E as pizzas. O telefone público em frente ao prédio, pelo qual passavam trotes tinha sido arrancado por um acidente. Mas não importava mais. Isso, não mais. Estavam indo buscar o filhinho na escola pública próximo de casa. O índice de violência lá só não era maior do que no subúrbio abandonado da cidade, onde havia mais assaltantes do que pessoas de bem.
  As gaivotas apostavam corrida no céu, voando alto e trombando umas contra as outras. Eles já as conheciam tão bem que as dividiam por nome e manias esquisitas.

Os dias queimavam a nuca dos desavisados que insistiam em sair de casa. O garotinho franzino e magricela o qual eles chamavam de filho adoecera, uma gripe terrível, e como o garoto fosse asmático os remédios saíam mais caros do que a renda total da família. Certo dia, o pai chegou ao apartamento velho e encardido com cheiro de pizza, depois de mais um dia estressante oferecendo sua força de trabalho, e ela estava chorando aos pés da cama do filho, que ardia em febre. Soluçava com algo que parecia um arrependimento crônico, ele achou. Resolveu ir deitar mais cedo naquela noite. Saiu para procurar emprego muito mais cedo do que o habitual, mais para não olhar para o rosto deprimido da mulher que parecia não mais amá-lo do que por outra coisa. Empregou-se numa firma de papel.

Ela dividia o trabalho no hospital com a obrigação de cuidar do filho doente e do marido que já nem via mais, tão cedo saía e tão tarde chegava. Fora morar com aquele homem contra a vontade da mãe. Como em filmes românticos, um belo sábado acordou e disse que ia fugir de casa. Agora tinha uma casa apertada, o marido desempregado e um filho doente para cuidar.

Ele bebeu demais. Bebeu mais do que o corpo fragilizado pela má alimentação poderia aguentar  Não almoçava mais, para que a mulher e o filho pudessem ter algum dinheiro sobrando, e sofria só de pensar na mulher chorando aos pés da criança. E entornava mais um gole. Lembrou de quando eram jovens e destemidos, uma época em que tudo era só um desafio a mais, que mais cedo ou mais tarde seria vencido. Agora, ele não sabia se pelo passar dos anos, já não conseguia ver perspectiva de melhora. Chegou à rua de casa, deitou na calçada, e sentiu o cachorro pulguento que morava por ali farejá-lo, à procura de comida. Depois de alguns minutos, já desanimado com o cheiro forte de álcool e a falta de comida, o animal deitou-se ao lado do homem, e passaram a noite ali. Acordou com o rabo do cão batendo a intervalos sincronizados em sua face. O leiteiro chegara, pusera a garrafa ao canto das portas e saíra. O cachorro virou a garrafa e agora bebia feliz o leite antes que esse fugisse pela sarjeta.

O homem entrou em casa. A mulher perguntou onde ele fora, disse que ele fedia a leite, álcool e cachorro, e começou a chorar. Ele surtiu alguns segundos que oscilavam entre o silencio e os soluços da mulher.

Àquela tarde saiu para passear com o filho que já melhorara, e voltaria às aulas na semana seguinte. Pararam num ponto pedregoso do litoral, e ele lembrou-se de quando contavam as gaivotas. Lembrou-se que corriam e que cantavam com os bêbados amanhecidos. Lembrou-se das poesias feitas na hora, que ele dedicava a ela aos gritos, no meio da rua. E agora já não havia mais tempo para isso. A mulher chorava só de vê-lo, e parecia não amá-lo mais.

Decidiu então que reataria o amor que existia entre os dois, nem que isso lhe custasse mais do que um dia de trabalho. Comprou flores, escreveu poesias, talhou em madeira um coração acertado pelo cupido, e chegou mais cedo em casa para preparar um jantar. Gastou metade do dinheiro do mês numa garrafa de vinho cara. O vinho nem era tão bom assim, mas, afinal, nem seu salário era.
Ela chegou à casa uma hora antes do previsto, muito pálida e abatida. Mas ele, na ansiedade, já havia feito tudo. Ela estancou à porta, olhou o jantar à luz de velas. Seus olhos se encheram de lágrimas que ele imaginou serem de alegria. Esperou que ela sorrisse e dissesse que o amava mais do nunca, agora. O sorriso não veio. Ela virou as costas e saiu desabalada escada abaixo. Ele olhou pela janela e viu-a atravessar a rua e sair correndo. “Será que nada mais vai te agradar?”.
Ele conseguiu encontrá-la na praia, já enegrecida pelo crepúsculo. Sentou-se ao lado dela.
“Por que você não me ama mais?”
“Eu... Amo.” A demora para responder o deixou com o coração na mão.
Ela virou-se para encará-lo, e ele pode ver mais do que nunca porque a amava: era linda aos seus olhos. Ela falou com a voz embargada, ”Lembra quando nos conhecemos, e fizemos juras de amor eterno, e eu briguei com a minha mãe e fugi com você?”. Ele concordou com a cabeça. ”Você está arrependida disso?”. Ela não respondeu. ”Lembra que vivíamos num lugar perigoso e que cheirava a pizza?”.
“Lembro. Ainda moramos lá”, ele sorriu.
“Lembra que quando eu fiquei grávida, e você gritou e disse que não poderíamos sustentar outra pessoa, e quando eu estava com vinte e duas semanas, fugi e dei à luz numa rodoviária?”. Ela agora chorava mais do que nunca, os pés brancos de frio juncados na areia molhada. Ele franziu a testa.
“O que há?”.
Ela encarou-o por um longo tempo. O garotinho, fruto do relacionamento, agora brincava de carrinho na casa da avó.
“Estou grávida.”

Obs. É claro que eles passaram por dificuldades maiores agora. É claro que brigaram mais do que nunca. É claro que se questionaram se a amor ainda existia, e por diversas vezes pensaram em ir embora e largar tudo. O que define se foram felizes ou não é sua concepção de felicidade ou da falta dela. Se dificuldades lhe fazem infeliz, então você nunca será feliz. Isso não é auto-ajuda. É só uma forma um pouco mais otimista de encarar as coisas.
   

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