sexta-feira

Até o fim do mundo


Saiu de casa e começou a correr.Passou correndo pelo posto de gasolina. Correu entre uns muros quebrados da antiga escola em que estudara. Acelerou o passo na avenida principal, enquanto via todas aquelas vitrines fluorescentes passando velozes e rindo sem dentes. Correu com os cachorros de rua. Correu com os mendigos que disputavam comida. Correu com a menina que amara por toda uma vida. Passou por um rio fundo e molhou a camisa nova. Pediu desculpas ao trombar numa velha senhora. Passou correndo por um show de rock tocado com garrafas pets. Correu para acompanhar o sol. Ouviu o batuque rápido de um tambor que acompanhava seus passos. Correu pelas cenas de um filme erótico. Sentiu pena daquela mulher. Passou correndo por um namorado que pedia desculpas com flores, e correu mais rápido para não ouvir a resposta dela. Correu pelo porto, enquanto ouvia umas baleias cantarem Elvis com trombetas. Decidiu que estava cansado. Correu em círculos por um hotel de beira de estrada. De manhã, quando a camareira foi abrir tudo, ele saiu correndo. Foi perseguido por um cachorro babão que queria brincar. Viu campos verdes, que depois foram ficando roxos, amarelos, azuis. E viu outros cheios de crianças com picolés. Sentiu as solas dos sapatos descolarem. Descobriu que ler e correr poderia fazê-lo tropeçar. Correu entre folhas murchas de árvores no chão. Correu num dia de chuva. Num dia de trovões. Num dia de sol ardente. Num dia em que ninguém saiu. Passou por uma cidade em que todos queriam correr também, mas não tinham coragem. Correu por montanhas. Correu mais rápido quando notou um urso faminto por ali. Correu. Correu até um abismo sem fundo. E não parou de correr. Até que sentiu os pés tocarem o vazio, e as pernas flutuaram enquanto ele descobria que havia chegado ao fim do mundo.

E correu mais ainda. E não parou.

quinta-feira

Brisa


Declare-me acima de qualquer suspeita e abaixo de nada mais do que um mundo inteiro de culpa. Faça-me crer que de todas as coisas do mundo eu sou a mais infinitamente descartável, a ponto de rir do absurdo, só porque nem o maior dos absurdos seria absolutamente tão resoluto quanto eu já fui um dia. Faça-me sentir arrepios sem frio, sem medo, sem dor. Faça-me rir sem graça. E faça-me chorar sem lágrimas, porque só o que consigo mesmo é isso: é chorar em silencio enquanto não escorre uma nesga de tristeza. E tudo porque não é tristeza. É quase que desesperança mesmo. Levante minhas mãos, e olhe entre meus dedos, e descubra porque mãos no ar valem muito mais do que aquelas que se escondem em bolsos. Crie bolsas de ar a partir da pulsação de uma brisa, e brise como eu seria capaz de brisar, por nada mais além de qualquer trocado inteiro. Nada além do que já estou acostumado a não ver. Sabe aquelas coisas que você já se acostumou a não ver?

terça-feira

Texto piloto



Deixou o outro por ali mesmo, desacordado e cheirando a pólvora. Correu para bem próximo. Queria ver tudo de perto. As calças velhas já apertavam as pernas finas e dificultavam até a locomoção. Uma mulher rabugenta passava olhando, e ele fingiu estar perdido. Olhou para os lados, pôs os dedos no ar. Fez alguns gestos estranhos. Coçou a cabeça. Sentiu grãozinhos de areia, correndo feito loucos pelo couro cabeludo. A mulher, ao invés de ir embora, aproximou-se do rapaz de cabelo seboso e escorrido que devia estar perdido. Ela mostrou-se interessada em ajudá-lo, depois de uma visitinha à velha casa que herdara do saxão de quem fora esposa. O velho morrera com estranhas marcas e uns panos velhos enrolados no pescoço, que ela alertara à policia como um brutal suicídio. Os detetives perguntaram o porquê de tanta demora em avisar o ocorrido. Ela viajara a uma cidadela próxima, para visitar uns parentes, argumentou. Por três dias?Sim, ela disse. Ninguém em lugar algum vira ou ouvira qualquer argumento que procedesse com as palavras da mulher.