terça-feira

A menininha


“Às vezes, como que num suspiro longo demais, acabamos não sentindo o último tremor que vem com a expectativa de voltar pra casa. Perdemos o vento que passou entre os dedos, fez cócegas e continuou correndo por aí. Querer, às vezes, não é o suficiente. Não é a garantia que vá dar certo. Tem coisa que a gente tem que querer muito. De esquecer o tempo pensando naquilo. E se perder num monte de devaneios. E perder o próprio compasso. E de perder o ar. Tem que querer muito. E tem que ser sincero.”

Ainda dava pra ouvir o som repetitivo e melódico, que me fazia crer que ela voltaria. Estaria ali, comigo, a qualquer momento. Sorrindo outra vez. Segurando minha mão, apertando, e me olhando pra dizer que não sairia mais dali. Do meu lado.

Aquela mesma menininha que veio sem avisar, me segurou e fez acreditar que não soltaria mais. A mesma que eu vi chorar tantas e tantas vezes. Fui visitar sem aviso. E era sempre um sorriso enorme. Um conforto sem fim. Ela mesma. Talvez tivesse que ser assim. Talvez eu tivesse que perder meu muro, tivesse que sair da minha zona de conforto pra aprender a pensar um pouco mais. Tudo pela mesma menininha. Por algum motivo, ela está fazendo muita falta hoje. Muita.

O Tempo


Quando abriu os olhos, já não sabia onde estava. Não encontrou nada além de alguns espelhos quebrados, destruídos pelo tempo, ou por algum vento muito forte. Estava despido. Olhou ao redor, e lá estavam todos os restos do que devia ter sido algo excepcional. Sentiu o ardor nas mãos tarde demais para perceber que o vidro quebrado as estava perfurando. Levantou-se devagar, olhou ao redor. Não viu mais nada. Um grande clarão, e lá estava ele envolto em lembranças, em vislumbres, e em todas aquelas coisas que o cérebro projeta instantes antes de dormirmos de vez. Sentia o corpo pesado, como se sua textura não fosse mais de carne e osso e plástico, como os outros corpos que se encontram por aí. Percebeu então que estava desmaiando. Estava saindo de seu próprio mal estar, estava sendo cuspido de sua própria incompreensão das coisas. Estava tendo a oportunidade de finalmente entender a razão daquilo tudo, e a resposta estava sendo escancarada por uma espécie de porta. Mas estava ofuscado demais. Tentou chegar mais perto, olhar melhor.

Acordou do devaneio antes da hora, e nunca mais teve algo sequer próximo de descobrir o significado daquilo tudo. Por que tantos cacos de vidro, por que tantos espelhos quebrados, por que tantas lembranças que se misturavam com sonhos e alucinações? Nunca conseguiu descobrir. Por vezes diversas, até pensou que a resposta podia estar ali mesmo, escancarada, tão clara que ofuscava. Tão óbvia, tão simples. Mas concluiu que nada poderia ser tão óbvio assim. Porque a verdade óbvia demais é exatamente a que dói mais, a que perturba mais, a que magoa mais. E ele não queria que aquela fosse a resposta.

O espírito


De uns tempos para cá, as coisas definitivamente estão saindo dos trilhos. O tal do espírito do Natal, se é que um dia ele realmente esteve entre nós, ou se perdeu nas montanhas de presentes caros e inúteis, ou se mudou de vez para algum lugar muito, muito distante. A ideia que o velho Noel tinha de um natal feliz ficou completamente obsoleta. Aqui em casa, tudo foi feito antes da hora, sem muito exibicionismo, como sempre. Os presentes foram dados todos mais cedo também. Tudo ou de plástico, ou eletrônico. Ou da China, ou de Algum Outro País Asiático. Uns bonecos assassinos e monstros de lava para as crianças, e o meu avô contando a velha história de “No meu tempo, a gente não era entupido de presente. Quando ganhava alguma coisa, era um carrinho de madeira...” para quem ainda não tivesse ouvido direito.

E quem vai dizer que isso tudo está errado? É a ilustre Globalização, que permite que tenhamos produtos de marcas norte-americanas fabricados em algum país distante com baixos impostos e operários mal remunerados. E eu não diria também que o grande problema esteja na grande desigualdade das coisas. Uns jogando a comida fora, outros remexendo as latas de lixo à procura de algo para comer. Ou nas crianças com o vídeo games de última geração se contrapondo àquelas que devem ficar à espera de um ‘papai Noel solidário’ que lhe traga uma bola de futebol ou uma boneca. Afinal, essa é toda a lógica do capital, uns explorando e outros sendo explorados – por mais que sejamos extremamente insensíveis a isso. A grande tristeza está na forma como encaramos tudo isso. Até a ideia do Natal foi privatizada.

Nem sei dizer como poderia ser diferente. Não podemos ser inocentes a ponto de achar que as pessoas vão enfim aprender a se respeitar e a se tratar como iguais, porque obviamente isso não deve acontecer. Seria de se esperar que a solidariedade estivesse presente no dia do ano que a celebramos, mas ela não está.

Compramos uma árvore, neve de mentira, enfeites que brilham em diversas cores, presentes, um peru e o que mais houver de comestível ou inflamável. Quase ninguém se lembra de agradecer por estarmos todos bem alimentados e aquecidos enquanto tem gente com fome e frio, que nem entende para quê serve esse tal Natal. A data, por mais incrível ou surpreendente que possa parecer, não é celebrada só pelos presentes, ou pela comida, ou mesmo pelo show de luzes e fogos de artifício. Eu tenho certeza que todos sabemos, mesmo que bem lá no fundo, que a magia do Natal ainda existe; a solidariedade e o respeito ao próximo ainda estão por aí. Em algum lugar. Esperando que as encontremos e as usemos para o bem geral, enfim.

Quando eu era criança


Quando eu era criança, ganhava um monte de coisas legais. Carrinhos de controle remoto, bola de futebol, livros de riscar, coleções infantis. Um monte de coisa divertida. E ganhava bonecos também, mas enterrava todos no quintal, sabe Deus por que. Uma vez, ganhei até uma bicicleta vermelha, que me rendeu uns bons tantos de arranhões. Daí eu cresci um pouco, e os adultos todos, no auge de sua sabedoria de Entendedores das Leis do Universo e suas intermináveis teorias de como compreender e educar as crianças, decidiram que eu não deveria ganhar mais tantos brinquedos assim. Deveria aprender a crescer, colocar um terno cinza, ganhar dinheiro e viver como mandam as leis da sociedade. Num memorável natal, ganhei minhas primeiras duas cédulas de dinheiro. Era pra ser algo legal, que me daria a oportunidade de comprar o que quisesse, ou qualquer que fosse a lição da coisa. Enfim, não funcionou. Fiquei frustrado, irritado e, voltando de ônibus pra casa, perdi uma das cédulas. O bom foi que nesse mesmo ano ganhei minha primeira literatura infanto-juvenil. A partir dali, e eu ainda tinha meus recém-comemorados nove anos, as coisas começaram a mudar de forma brusca. Perdi direito à pascoa, ao dia das crianças e a qualquer coisa que pudesse me servir de fato na lista de presentes.

Como a ideia do dinheiro não funcionou em nada comigo, os anos seguintes foram cheios de livros, livros e livros. Ficção, histórias de guerra, conspirações, lendas, tudo o que pudesse fazer com que os adultos ainda quisessem me dar algo de presente. Sim, porque eu nunca conseguia fingir que gostava de ganhar algo, se eu realmente não tivesse gostado. Largava o presente num canto qualquer, dava um sorriso quase acusador, e ficava visivelmente triste. E, como se não bastasse, minha lista de Coisas que eu Realmente Ficaria Feliz em Ganhar nunca incluiu roupas. Meias, cuecas, calças, camisas, lenços, é quase impossível me agradar de verdade com esse tipo de coisa, desde sempre. E no período negro da adolescência eu usava calça rasgada, boné e uma camisa estupidamente sem sentido. Usava as roupas novas em casa, recortava as velhas pra sair. Nunca tive saco pra dar o sorriso educado, eu simplesmente estampava na cara, “não gostei!”.

Então, concluí que nunca mais ninguém me daria coisas legais de verdade, e eu nunca mais teria motivos realmente interessantes pra esperar o chocolate da páscoa, ou presentes de natal, se ficasse esperando alguma boa vontade de terceiros. Comprei escondido, aos quinze anos, minha primeira guitarra. Virei fã – nem tanto assim - de HQ’s, colecionador de tirinhas. Pedi pra ganhar bonequinhos de presente, livros de quadrinhos, e reuni todas as minhas histórias de crianças num lugar especial da casa. Mas, por favor, não vá achar que me transformei num infantil, num solitário que ainda enterra bonecos no quintal ou algo do tipo. Claro que não. Só acho que a infância é importante e singular demais para ser podada conforme os anos passam, e cada um tem a própria responsabilidade de saber quando a sua deve acabar. No meu caso, não quero que seja agora e, aliás, nem tenho pressa em considerar o assunto.

Aquele aperto estranho


Aquele aperto estranho. O tempo passou. Tanta coisa. Tanta história. Tudo é apenas um vislumbre momentâneo, tudo é apenas aquele tal aperto no peito. Os sons e os cheiros, tudo virou um vulto, alguns segundos perdidos olhando pela janela, vendo mais uma vez ela passar. A vida sorri apenas, esperando que alguém a veja e cumprimente-a. aguardando algum sinal de reconhecimento, daqueles que fazemos quando encontramos ao acaso um velho amigo, fugindo da chuva embaixo de uma árvore. A grande maioria das coisas durante toda uma existência só acontece uma vez. Uma única vez, e a decisão errada pode deixar tudo estranho. Uma palavra a mais ou a menos, um passo que foi ou não foi dado, um impulso que foi ou não foi contido. E tudo pode simplesmente mudar. Pode acontecer de um jeito que não teria acontecido se você tivesse dito outra coisa em algum outro momento. Aquilo que você disse no telefone, quando já não se entendia mais, e perdia a própria consciência para o sono, pode ter mudado o curso das coisas.

E se aquilo aconteceu pela última vez? E se você o viu sorrindo pela última vez? E se ela é o amor da sua vida, aquela com quem você vai sentar nos fins de tarde pra discutir a transitoriedade da vida, e você simplesmente deixou-a ir? Não é uma questão de aproveitar a vida a todo custo, deixar as coisas de lado, ir morar no campo e aproveitar cada mínimo segundo para estar vivo ao máximo. É simplesmente ter noção de que tudo pode acabar instantaneamente, de que toda uma história pode desaparecer para sempre. Aliás, acabamos de nos deparar com uma das palavras mais fortes e mais impactantes que existem: sempre. Amar pra sempre. Estar sempre ao lado. E, enfim, desaparecer. Pra sempre. A verdade é que poucas pessoas pensam nisso realmente. No quanto somos pequenos, ínfimos e insignificantes. No quanto a nossa existência ou inexistência não afeta em nada o curso das coisas. Em como vamos todos desaparecer, sem deixar nenhum rastro. A maioria nem se dá conta de que a vida está passando. E essas pessoas deixam a amizades morrerem, os amores passarem. E vivem por si e para si, sem nunca parar para pensar no que disseram, em como magoaram alguém, ou em como resolveram se fazer infelizes.
Temos tão pouco tempo. Tantas novidades ainda por descobrir. E tudo o que resolvemos fazer é sentar e esperar. Esperar que a vida enfim se esgote, que não tenhamos feito nada, e que o fim nos agarre e nos leve ao sentido único e literal do sempre. Inexistir pra sempre.