segunda-feira

1968 - 3


SEU ZÉ CARLOS

Clarisse foi uma menina fascinante. Diferente de qualquer outra pessoa do mundo. Eu nunca descobri se aquele ar triste que ela tinha era real ou só uma forma particular de enxergar as coisas. Nunca chegamos a conversar muito. Em geral, eu ficava feliz só de tê-la ao meu lado de vez em quando. Ela falava de coisas realmente tristes. De como às vezes somos obrigados a ter uma vida que não queremos. Ah, Clarisse. Eu não queria que o fim estivesse assim tão próximo. Ainda não me sinto pronto. Sinto que ainda tenho muitas coisas para fazer. Sinto que ainda não descobri tudo que precisava.

Não tenho meus amigos aqui comigo, e não consigo lembrar o porquê. Não tenho família, nem ninguém, e não consigo lembrar quando foi a última vez que conversei com uma pessoa. Tenho a impressão de que você ficaria muito decepcionada se me visse agora. Não consegui evitar todas aquelas coisas de que você sempre gostou tanto de falar.

Espero que você esteja bem.

1968 - 2


SEU ZÉ CARLOS

E a querida Ruth? Ela era a melhor pessoa do mundo. Tão doce, tão gentil, tão prestativa. E tão bonita. Meu deus, como era bela. Sempre deixando o longo cabelo castanho e ondulado brincar de fazer cócegas no vento. Ruth seria fácil, fácil o amor da vida de qualquer um. Não havia ser mais apaixonável.

E como era inteligente! Que falta que ela faz. Por onde anda? Com quem estará? Quando foi que perdemos contato de vez? Eu simplesmente não lembro. Parece fazer tanto tempo. Quase uma vida inteira. Talvez seja. Não sei.

Eu a conheci numa viagem que fiz ao Nordeste do país. Vivera por alguns anos na Europa, e viera ao Brasil para visitar a família. Falava dos motivos da grande depressão, dos prejuízos da guerra. Ruth dedicara um grande tempo tentando me ensinar a amar a vida. Mas eu nunca levei aquilo tudo realmente a sério. Até que ela se foi. Cansara.

Hoje, penso que um dos maiores erros que cometi foi achar que ela me pertencia. Ela nunca pertenceu a ninguém. Deve estar tão feliz hoje. Ruth sempre foi aquele tipo de pessoa que fez por merecer a felicidade. Deve estar casada. Espero que sim. Com alguém que ame a vida tanto quanto ela. Querida Ruth. Como eu queria lhe ter por perto agora. Mesmo como amiga. Só para poder pedir desculpa por tudo que eu disse. Por todas as coisas horríveis que eu fiz. Para poder dizer que sinto saudade.

 

1968 - 1


SEU ZÉ CARLOS

Descansou os braços finos e magoados sobre os joelhos, e postou ali a cabeça rala e sensível e cansada. Não tinha mais que alguns minutos para pensar tudo. Toda aquela selvageria, meu deus. Tudo acontecera de forma tão desumana e tão brutal que já não se podia mais crer que dali em diante, daquele momento ínfimo pra frente, alguma coisa voltaria a ser como antes. Teve toda conta de pesadelos que se tem quando estamos perdidos e escondidos no escuro, no canto mais remoto da consciência. Lembrou, antes de um lépido suspiro final, da juventude que tivera e que desperdiçara. De quantas vezes nem vira a vida lhe espetar como naquele jogo de festas de aniversário em que se deve fixar o rabo no burro com um alfinete. Sentia-se estúpido e frágil. Como não fora antes. Como não se sentira nunca. Aquilo acontecera da pior maneira. Estava num último domingo de existência, sob um temporal que inundava as baixadas, sob uma noite escura e tenebrosa, sob a própria sombra, sozinho e sem um amigo sequer, olhando para as paredes lisas, velhas e frias do hospital, encarando o cinza que se confundia ao chão, à parede e ao teto manchado. Sentia-se um bicho insensível e irracional, e seria capaz de chorar se houvesse alguém que lhe pudesse sentir pena. Mas não havia. Ninguém. Nem mesmo os inimigos perdiam algum tempo com aquele velho cansado e borrado, sem rumo e sem fé.