quinta-feira

Kamikazes


Corria desesperadamente, uma dor apertando seu peito, fazendo com que tivesse dificuldade de respirar. Ainda vestia a roupa do circo, e ainda podia ouvir gritos distantes, que lhe informavam que nada o faria ficar tão longe que não pudesse ouvir aquilo tudo. Já havia arrancado os sapatos desde a hora que saíra, e agora sentia os pés em carne viva, e cheios de poeira. Arfava e tossia com as mãos escoradas sobre os joelhos, num meio movimento de quem esta prestes a cair de cansaço. Os pingos de suor escorriam num reflexo de cores, daquelas que só pessoas de circo usam. Daquelas que te deixam mais imponente. Daquelas que te congelam triste ou feliz. Numa expressão que, de tão irreal, torna-se sincera. As mãos estavam molhadas, de suor e sangue, ele achava. O líquido quente escorria pelos braços, e se esgueirava até a ponta dos dedos, e pulava como um mortal kamikaze. Sem medo algum. Caíam e evaporavam em pouco tempo. Parecia ser este o sentido de suas vidas de gota: escorrer por onde desse, se prender a coisas que lhe fossem de importância, ou pularem dos lugares mais absurdos, para um futuro que, todas elas sabiam, as levaria para uma triste e solitária evaporação. Para um triste fim. Mesmo assim pulavam. E pulavam sem medo da dor. Pulavam sem medo do fim. E gritavam como numa queda de montanha russa até se espatifarem no chão quente e não durarem mais do que alguns segundos, fervendo e evaporando. Mesmo assim pareciam não se arrepender, e o olhavam com a simples concordância de que se pudessem, sim, fariam tudo de novo. E não parariam até ter uma perspectiva melhor de existir. Pular, cair, sorrir, evaporar.
Ele ficou ali, pensando no quanto poderia mudar sua vida. Mais do que já havia mudado. E pensou que se a noite de ontem foi aproveitada pelo cansaço de um bom dia, a de hoje poderia ser mais bem aproveitada com o reflexo de um dia muito melhor, um dia quase perfeito, um dia sem precedentes, sem medos, sem lágrimas tristes, daquelas que escorrem pelo rosto, pulam pelo queixo e decidem que um fim menos doloroso seria secar numa blusa velha, sufocadas entre os linhos do algodão. Pensou no quanto estava propenso a mudanças, e no quanto poderia se arrepender de tudo o que fizera. Mas pensou também no quanto poderia se arrepender de tudo o que não fizera. De todas as chuvas pelas quais deixou de se molhar. De todas as ruas pelas quais deixou de correr. De todos os ínfimos momentos que deixou de aproveitar para sorrir, abraçar e tudo mais o que sempre quisera fazer. Como uma gota suicida, que desce pelo rosto, se pendura no queixo, e depois se joga fria num pedaço de algodão, para que todos possam notar que ela passou por ali. Para que todos possam notar que ela morreu de tristeza.

O sangue ainda escorria. O suor sujo de poeira também. Ele se ajoelhou ali mesmo. E prometeu a si mesmo que viveria como gotas kamikazes, daquelas que pulam pro chão quente quantas vezes precisarem, sem medo de fazer tudo de novo. Decidiu que nunca seria bom morrer sufocado em linhas atravessadas de algodão. 

2 comentários:

  1. Caramba, que texto lindo! Intímo, cheio de sentimento, e super bem escrito. Parabéns :)
    deixo meu link pra você visitar, se quiser.
    Beijos
    Isabela.

    ResponderExcluir
  2. E talvez seja exatamente o que devemos fazer. Viver como as gotas vivem. Sem ter medo de pular. E pular de novo. "Pular, cair, sorrir, evaporar." Muuito bom. Mesmo. Esse é o meu menino. =)

    ResponderExcluir