segunda-feira

Aonde Formos(L)


Moravam juntos num prédio de paredes cheias de lodo no centro da cidade. Ela era enfermeira estagiária, e ele...bom, ele era cartunista, e universitário, mas só quando queria. E viviam como um casal. Quase não brigavam. O apartamento tinha um estranho cheiro de pizza, talvez porque era o alimento principal ingerido no local. Não tinham muitos bens materiais, mas eram felizes. A maior diversão que tinham era aos sábados, quando passavam a manhã assistindo a desenhos reprisados e programas de culinária. Ela nem sabia cozinhar, mas prestava atenção a todos os detalhes, até que ele a abraçava e lhe fazia cócegas. Passavam horas brincando disso, até que ela ficava sem ar de tanto rir e fingia estar irritada, só para receber alguns minutos a mais de carinho. Quando não tinham o que fazer, geralmente aos domingos de manhã, desciam as escadas do prédio e iam para o telefone público do outro lado da rua, passar trotes.

Iam para uma praia poluída perto dali e ficavam contando os pássaros, e eram muitos. Eles não tinham bens materiais de real valor, mas eram definitivamente felizes.
Ela ficou grávida. 'Não temos dinheiro, não temos como sustentar alguém novo', ele disse. E quando começasse a estudar?E a alimentação?Ele não tinha como sustentar uma criança, e não queria que ela passasse fome ou tivesse qualquer tipo de necessidade.Não podiam ter aquele filho e pronto!

No primeiro mês de gravidez,ela vomitava muito,e sempre que podia gritava que ele era um inútil e que todos morreriam de fome.Ele sorria nervoso e tentava manter a postura de homem da casa.

No sexto mês aconteceu algo atípico,e eles tiveram a primeira crise séria no relacionamento.Ela estava desproporcionalmente gorda,e ele absurdamente magro.Estava fazendo dois turnos de trabalho puxado todos os dias,e faculdade à noite.Chegava em casa cansado,mas ainda tinha força o bastante para ouví-la em suas intermináveis mudanças de humor. Ele sorria quando ela dizia que sentia a barriga mexer.Ainda conseguia,mesmo com o cansaço, fazer forças extras e projetava nela sensações diversas,numa massagem para agradar ao bebê.

Ele chegou em casa certa noite,mais exausto do que o normal,e a encontrou com as malas arrumadas,o único vestido que ainda lhe cabia cobrindo-lhe a enorme barriga.’Não aguento mais!’ela disse e tentou correr.A criança não lhe dava grandes vantagens.Ele não sabia o que fazer.Não sabia o que pensar.’Siga-a,idiota!’foi o que seu inconsciente lhe disse.Nesse meio tempo ela já havia entrado num táxi.Ele correu o máximo que pôde.Não tinha dinheiro algum para pagar outro táxi.Começou a chover,e as estrelas pararam de piscar no céu.

Já era mais de meia noite quando ela desceu do táxi na rodoviária.Disse ao taxista que ia buscar uma tia que estava chegando,e que então lhe pagaria a viagem.Correu o máximo que ainda conseguia e trancou-se no banheiro sujo e fedido que era usado por quem esperava os ônibus.

As contrações aumentavam como nunca. Ela deitou-se no chão frio do banheiro da rodoviária e sentiu a vida lhe escapar. Podia sentí-lo, mas não podia vê-lo, e isso lhe fazia sentir-se mal. Tinha sido burra. Não devia ter fugido da única pessoa que não lhe achava uma drogada inconsequente. Fugira da única pessoa que reparava como seus cabelos brilhavam ao sol das nove da manhã, e da única pessoa que achava seus olhos castanhos um mistério, não um símbolo de depressão. Ele reescreveu a triste história que a perseguia. Ele amava-a. E ela fugiu. Burrice.

Ele corria na chuva, sentia os pingos de chuva salpicando-lhe a face. Não sabia aonde ir, mas não podia perdê-la para a morte. Não resistiria. Avistou longe um táxi parado em frente à rodoviária. Sorriu. Ela estava ali. Ou próximo. Seu coração batia com tanta violência que parecia querer saltar-lhe pela boca. Passou pelo taxista, que parecia extremamente irritado. Ouviu baixinho uma musica, e sentiu toda a sua vida passando diante dos próprios olhos. “... Quando não estás aqui, sinto falta de mim mesmo, e sinto falta do meu corpo junto ao teu...”Incrível como ela conseguia tratar-lhe daquele jeito e ainda fazer com que sua paixão aumentasse mais e mais.Ouvia um choro baixo no banheiro.Era ela.bateu na porta com toda a força que ainda lhe restava no corpo,mas não conseguiu abrir.E assim bateu na porta várias e várias vezes,enquanto ela gritava com a dor que lhe escapava dos pulmões.

Uma criança chorou. O zelador da rodoviária relatou aos guardas que encontrou o homem desacordado ao lado da porta, com fraturas múltiplas nos braços. Disse também que arrombou a porta ao ouvir choro de criança, e encontrou-a largada ao lado da mãe, que já nem respirava direito.Passaram o resto do mês no hospital,e não puderam ver o quão famosos ficaram.Todos os jornais da cidade noticiavam a comovente historia da criança que nascera no banheiro da rodoviária.

E não ouviram quando um amigo próximo relatou ao repórter do principal jornal da TV."Eles realmente não tinham nada de valor.Não sabiam o que era ser realmente feliz.Agora tem um lindo filho.Encontraram de fato a felicidade!"





2 comentários:

  1. Que beleza de conto cara!
    Sério, dava pra fazer um conto com mais páginas, talvez até um pequeno livro sobre a vida do casal, já até imagino um título -Simples como "um casal"-...
    Muito bom cara!

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  2. Verdade, mt bom esse *--*
    Foi o que eu mais gostei!
    Tem uma mensagem mt bonita.
    Parabens amigo!

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